Vamos fazer um exercício de imaginação de cenários de futuros juntos a partir do filme de animação Flow? Então, vamos viajar 10 anos adiante para depois retornar ao momento atual, nosso presente. Nesse futuro, esse pequeno país do Leste Europeu, a Letônia, lidera a produção audiovisual de animação digital no ocidente, sendo também um local que atrai muitos talentos das áreas de games e de experiências artísticas imersivas, viabilizadas através de simulações de cenários passíveis de personalização, e que “surgem” simbiotizadas ao entorno pela utilização de dispositivos de realidade aumentada. Os dispositivos para a criação de imersão são públicos, e a tecnologia embarcada neles é de código aberto, pois eventos como infodemia e catástrofes climáticas dos últimos dez anos impactaram no desenvolvimento sociocultural de modo geral. Como tudo isso foi possível? Bem, o ponto de partida aconteceu quando um pequeno grupo de profissionais decidiu fazer um filme de animação que explora a ideia de cooperação a partir do relacionamento entre quatro animais completamente diferentes. O protagonista, um gato preto muito expressivo, conquistou o mundo todo com sua curiosidade e coragem, tornando esse(s) futuro(s) um desejo compartilhado.

Quem acompanhou o texto deve estar pensando: que “viagem” criar esse cenário a partir de um único filme de animação! Então, para quem pensa assim é importante saber que, quando estamos falando de ativar vocações criativas locais – algo fundamental para estabelecer pólos de produção de bens da Economia Criativa e/ou Indústrias Culturais e Criativas, que tem como base o conhecimento – é preciso só um empurrãozinho para que os elementos, que já estão ali funcionando de modo desconectado, comecem a se inter relacionar como em um grande quebra-cabeças. E, sim: Flow, esse pequeno filme de animação realizado em um software de código aberto, é um excelente exemplo de como esse quebra cabeças começa a articular várias peças independentes. Esse filme é, hoje, um fenômeno cultural, social, econômico e, claro, mercadológico. Lógico que o fato de ter ganho prêmios importantes da indústria do audiovisual contribuíram muito para isso, fazendo com que o mundo passasse a olhar a Letônia de um modo completamente diferente. Além disso, todos esses fatores conectados estão colaborando para que as pessoas desse local olhem para si mesmas de modo completamente diferente também. Isso tudo oportuniza que a Letônia venha a se posicionar no cenário da geopolítica global por meio de um tipo de influência conhecida como Soft Power, iniciando a exercer essa influência justamente pelas produções geradas pela indústria audiovisual de animação local. Inserido dentro do contexto das Indústrias Culturais e Criativas, esse setor em específico pode ativar transformações em cadeia de modo amplo, impactando inclusive áreas e setores adjacentes, como educação e mobilidade urbana, para citar alguns.

Quando olhamos para estatísticas de mercado, vemos que as Indústrias Culturais e Criativas representam áreas e setores marcados por um dinamismo muito forte em termos de economia global contemporânea, gerando aproximadamente €2,25 trilhões anualmente (3% do PIB mundial). A taxa de crescimento anual dessa vertente econômica gira em torno de 4,3%, e é considerada superior à economia global.
No que diz respeito à União Europeia, o impacto das Indústrias Culturais e Criativas é proporcionalmente significativo: cerca de 5,3% do PIB total do bloco vem de áreas e setores dessa(s) economia/indústrias, afetando diretamente as estatísticas de trabalho e empregabilidade do bloco. Hoje, cerca de 3,8% da força de trabalho total da UE está relacionada diretamente com as Indústrias Culturais e Criativas, repercutindo na geração de 1,9 empregos indiretos para cada posto de trabalho direto gerado – estamos falando de, pelo menos, 22 milhões de postos de trabalho.
Vamos olhar para outro exemplo, mais hype, a série White Lotus. As duas temporadas da série, produzidas pela HBO e disponibilizadas pela plataforma de streaming Max, influenciaram diretamente no incremento do turismo nos locais onde as tramas foram ambientadas, respectivamente Havaí (EUA), primeira temporada; e Sicília (IT), segunda temporada. Segundo dados da Oxford Economics, a segunda temporada da série foi responsável pela injeção de U$38 milhões de dólares na economia da Itália, gerando algo em torno de 1,5 mil empregos diretos. A terceira temporada, ambientada na Tailândia, já produz os seus efeitos, consolidando a rede de hoteis Four Seasons – locais onde boa parte da trama de cada temporada acontece – como destino de turistas que praticam set-jetting, nome dado ao tipo específico de turismo inspirado por filmes e séries. (Dados disponíveis em Inteligência Financeira)

Então, quais são as considerações que podemos fazer sobre tudo o que trouxemos aqui? A primeira delas é que definitivamente não é absurdo pensar que o cenário de futuros que criamos no início dessa análise não seja possível. Ele tanto é possível, como é bastante provável e plausível. A Letônia tem sim uma chance incrível nas mãos no presente, sobretudo quando olhamos para as atuais movimentações no complexo jogo geopolítico em torno das estratégias de influência de Soft Power e Hard Power atuais e, também, para a crise criativa do setor de animações digitais. Os EUA, país que há décadas utiliza de estratégias ligadas a essas duas dimensões de influência, está claramente passando por um momento de acúmulo de crises política, econômica, social, cultural e democrática. A Coreia do Sul, nação que fez do Soft Power uma forma de transformar o imaginário Ocidental em áreas como música, cinema e séries de TV (streamings), vem demonstrando claros sinais de esgotamento criativo.
Além desses fatores, o país vizinho à Letônia – a Estônia – é o atual endereço de muitas startups internacionais, que primeiro aproveitaram para criar seus endereços digitais neste país via programa de e-Residency, e agora estão alocando suas estruturas físicas localmente. Por fim, as mensagens subjetivas que o filme traz, de esperança, respeito à diversidade e à natureza, independência criativa, acesso e democratização do conhecimento calaram fundo nos olhos e nas almas dos espectadores, contribuindo para que Flow seja o ponto de virada para esse território.
Créditos: Este conteúdo foi produzido pela equipe do Lab de Antecipação da Luzz Design & Branding, com colaboração de Cesar Kieling